Ricardo Miranda e a experiência do cinema de invenção – texto de Pedro Bento.

06.JUN.14 | “Flaubert: uma maneira de cortar, de romper o discurso sem o tornar insensato” (Roland Barthes – O Prazer do Texto)

Ricardo Miranda foi o meu mestre no cinema e a sua partida às vésperas de completar 64 anos me deixou desconcertado. Este relato pretende expor a enriquecedora experiência conceitual e prática na montagem de imagens e sons para o cinema ao longo da colaboração e amizade que cultivamos ao longo destes quase 5 anos em que convivemos.

Ricardo dava aulas de Teoria da Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Era um professor de semblante enigmático e se expressava com poucas palavras. Sua figura grisalha lembrava o velho Orson Welles. Em seus cursos nos apresentava um recorte singular do cinema mundial e projetava filmes que ele garantia que dificilmente veríamos em algum outro lugar… Filmes de Peleshian, Paradjanov, Straub e Eisenstein! 

Defendia a montagem dialética de Eisenstein – que consiste em não considerar as imagens como tijolos em sucessão que erguem a obra como um todo, mas sim pensar o choque dialético: pensar a 3ª imagem formada pela mudança brutal de uma imagem para a a imagem seguinte – no corte seco.

Evidenciava a necessidade do pensamento no projeto do cinema de autor brasileiro: em filmes de Sganzerla, Glauber, Bressane e Saraceni! Para a vulgata, era a etiqueta pejorativa do “cinema marginal” – para nós alunos, eram filmes feitos de maneira libertadora e revolucionária – e Ricardo nos mostrava que os filmes eram muito mais do que isso: nos transmitia as leituras e as idéias por trás dos roteiros desses filmes a partir da interlocução e amizade que tinha cultivado com cada realizador. Finalizava dizendo “Estudem!”.

Fui chamado em 2011 pela amiga Barbara Vida, a jovem atriz e produtora de seus últimos 2 longa metragens, para participar das filmagens de seu primeiro mergulho sobre a obra de Flaubert: Djalioh – o seu segundo longa de ficção, reescrito por Ricardo a partir do estudo de roteiro que havia conduzido em 1980 com Breno Kuperman.

Djalioh conta a história de um cientista francês que vai até o Brasil colonial praticar o perverso experimento de cruzar uma escrava, com um macaco. Da imaginação do jovem Flaubert sobre o Brasil – que escrevera este conto fantástico aos 16 anos – nascia a bizarra criatura Djalioh. O texto carrega um projeto subterrâneo contra a ciência positivista que se praticava na Europa, além de fazer um deboche estarrecedor com a forma literária do romantismo.

Através da figura do narrador, penetrávamos nas profundezas da alma de uma criatura bestial, em pensamentos que serviam de bode expiatório onde se reforçava um discurso de crítica dos costumes que seria interditado a um personagem totalmente humano. Nas palavras do crítico Fábio Andrade, “Em Djalioh, as palavras são personagens, como os personagens são palavras”.

Durante as filmagens eu era ainda muito inexperiente e atrapalhado como assistente de câmera, e trabalhava para o virtuoso fotógrafo Antonio Luiz Mendes. Antonio é um fotógrafo com enorme senso de persistência na busca pela luz e pelo quadro almejados, trabalha com uma enorme seriedade nas horas de filmagem, e é de uma alegria reluzente e jovial nos momentos de intervalo e descanso.

Minha inabilidade com o trabalho no set foi compensada com o primoroso trabalho de montagem que tocamos, Ricardo e eu, em minha ilha de edição, ao longo de dois meses, em que encaminhamos Djalioh à sua forma final.

Se em aulas Ricardo defendia um corte rápido e veloz, era para que pensássemos ao máximo o exercício do corte, nos propondo mirabolantes desafios que devíamos entregar apressadamente no prazo de uma ou duas semanas, para que o curso seguisse em frente. Trabalhando por dois meses em seu longa, eu aprendia também um outro corte: em um filme que tinha planos que duravam seis… sete… dez minutos, às vezes. O método consistia em suspender as imagens ao limite até que os olhos gritassem “CORTA!”, e então entrava o plano seguinte: no corte lacaniano.

Então me tornei amigo de Ricardo, e pude conhecer aos poucos a sua vasta obra como documentarista, publicitário e gerente do departamento de interprogramas na TV Brasil. Djalioh teve cerca de dois anos de circulação em quase uma dúzia de festivais. Na vida social, Ricardo era um homem gentil, e sua longa carreira como montador (alguém que trabalha para diretores) pareceu ter solidificado a sua personalidade tranquila de alguém que dificilmente se estressava, na contramão da arrogância voluntariosa que se vê nas biografias dos diretores de cinema.

Depois trabalhando, nos momentos mais difíceis, quando o material bruto não parecia oferecer nenhuma solução para a montagem, era fundamental recorrer a suas realizações como montador. A lógica selvagem com que Ricardo trabalhava a montagem está presente de maneira bem pronunciada nos curtas H.O. (1979), sobre Hélio Oiticica, de Ivan Cardoso e O Som ou Tratado de Harmonia (1984), de Arthur Omar sobre a metafísica do som; filmes que Ricardo havia montado ainda no tempo das moviolas.

Em 2012, montei o longa de ficção Estado de Exceção junto ao diretor Juan Posada, pela primeira vez sem o constante diálogo com Ricardo Miranda. Nos reunimos com Ricardo com o filme já montado, e seus conselhos foram fundamentais para que chegássemos ao corte final. Ricardo respeitou os fotogramas de nossos cortes e propôs valorosas mudanças na macroestrutura do filme.

No ano seguinte, junto à amiga e filósofa Marina Cavalcanti, escrevemos um ensaio intitulado Estado de Exceção – Estado de Espírito que analisava a estrutura narrativa do filme. O texto foi publicado em uma revista virtual italiana e encerra em um agradecimento a Ricardo e a Rosemberg.

 

Neste ensaio confrontamos a forma do filme em questão a uma certa estética. Naturalmente nosso intuito não foi o de transformar a crítica feita a um cinema predominante em uma denuncia formal, mas sim de resgatar alguns dos paradigmas do cinema moderno, sempre tão presentes em filmes que apresentam uma forma desafiadora, e, ao mesmo tempo, tão faltosa neste cinema de efeitos que caracterizamos ao longo do texto. (…) Agradecemos aos realizadores Luiz Rosemberg Filho e Ricardo Miranda, pelos livros de Pasolini que nos foram emprestados, pelas conversas esclarecedoras, e pelo constante empenho dos dois, cada um à sua maneira, de sempre questionar as formas e os limites da linguagem cinematográfica, a cada novo filme.

 

Rosemberg, ou apenas Rô, para os mais próximos, tem quase uma centena de filmes-discurso onde às vezes ele próprio, noutras vezes atores e atrizes, declamam manifestos mesclados às suas bricolages, formando um todo de assuntos recorrentes: Rô escreve com poesia e pessimismo ao enunciar repúdio às guerras, fazer críticas aos governos e seus chefes de estado; e com uma admiração contemplativa sem igual, faz um elogio ao cinema, à obra de arte, ao erotismo e à intelecção.

As bricolages de Rosemberg são obras de arte que podem ser consideradas à parte, mas que estão também integradas a muitos de seus filmes. Seu primeiro longa metragem, Crônica de um Industrial, foi montado por Ricardo Miranda e fotografado por Antonio Luiz, em 1978, e já carregava todas as tônicas até hoje presentes no cinema de Rosemberg.

No ano de 2013, chegou a vez de Ricardo filmar mais um conto da juventude de Flaubert: em Paixão e Virtude, o adolescente criado no estranho ambiente de um hospital já ensaiava para a sua grande obra Madame Bovary, contando a história da conturbada paixão entre uma mulher casada e seu amante.

Ao lado da companheira e roteirista Clarissa Ramalho, Ricardo pôde aprofundar a questão do narrador de maneira ainda mais complexa. Em Paixão e Virtude, tem-se a absoluta superação da figura das personagens, e o que cada um dos atores representa são modulações de sentimentos complexos e ambivalentes, evidenciando uma multiplicidade interior dentro de cada persona.

Ricardo estabelecia suas parcerias de criação com muito diálogo e amizade, e orientado pela teoria aristototélica da matéria e da forma, ofereceu não o seu filme finalizado, mas sim o conto de Flaubert como matéria para que o músico Fernando Moura executasse a sua transposição. Ricardo estava naquele momento muito mais confiante para suas escolhas: com uma equipe maior, com melhores equipamentos, e um ânimo sem igual. E foi tempo de embarcar mais uma vez em seu maravilhoso set de filmagens, de vê-lo tranquilo e ocupado, constituindo a matéria de seu cinema, transpondo suas vastas pesquisas sobre poetas da imagem, da palavra e dos sons…

Com vigorosa montagem de Joana Collier, encadeou-se a forma de Paixão e Virtude: os cortes são como símbolos a serem decifrados, onde o que se vê é um encadeamento certeiro entre a imagem que se oferece e as palavras recitadas no discurso dos personagens-narradores. Coube também a Joana montar o curta autobiográfico de Ricardo, Palavra Exata (2009), que revela a sua relação com o irmão artista plástico Ronaldo Miranda.

Para todos nós alunos, parceiros de equipe, amigos, família e apreciadores de seus filmes nas mostras e festivais, Paixão e Virtude parecia marcar a despedida de uma longa e profícua carreira como montador, e o começo, julgávamos nós, garantido de uma vida de realizado. Numa manhã de sexta-feira, Ricardo Miranda não acordou. Ricardo deixou para todos nós uma paixão pelo cinema e, nos dias que se seguiram, tivemos o prazer triste de conhecer grandes amigos e familiares nesta circunstância esvaziante. Hoje, cada um de nós pode contar histórias do Ricardo que ainda não conhecíamos, que nos alegram, e nos fazem seguir em frente, pensando em nossas vidas.

 

 

 

foto Pedro Bento

 

 

 

 

Pedro Bento é estudante de Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Formado em Montagem e Edição de Som pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro, montou os longas de ficção “Djalioh” e “Estado de Exceção”.