Biblioteca edt. com Alfredo – A ilha Yonlu (agora em quarentena)

Hoje não vou falar sobre a biblioteca. Estou relendo Eisenstein para fazer uma série de textos sobre ele. A minha ideia é conseguir amenizar a pancadaria e os hematomas decorrentes para aqueles que ainda não enfrentaram o mestre da montagem em formato de livro. Na tela, seus filmes, ou pelo menos a famosa cena da escadaria, todo mundo (que monta alguma coisa) já viu e babou sem precisar de qualquer ajuda. É no texto que o pau come. Decidi tornar a surra menos dolorosa. Queria que alguém tivesse feito isso por mim. Talvez nem seja possível. Vou começar criando anedotas, digo, anestesias para cada capítulo de O Sentido do Filme. Ou vou morrer tentando. Prometo que, se não der certo na primeira tentativa, sigo tentando em paralelo com algum outro autor menos peçonhento. Mas, enquanto o seu Lobo não vem, vou falar sobre um filme que montei há uns quatro anos mais ou menos. Escrevi esse texto em 2017 a pedido do meu amigo Hique Montanari, diretor e parceiro de longa data. Ele me pediu umas linhas sobre o processo de montagem para usar na divulgação do filme. Cada membro da equipe principal escreveu o seu, e os textos podem ser encontrados na página do Facebook do filme: facebook.com/yonlufilme. Meu texto foi pouco lido lá porque exagerei na dose, e pouca gente tem paciência pra aguentar montador falando sobre o que faz da vida. Muito menos pra ler um textão de Facebook. A não ser, é claro, vocês. O meu povo. O povo escolhido. Segue a tripa abaixo. Boa leitura.

 

Porto Alegre, 28 de fevereiro de 2017

Vou ganhar um Oscar com essa montagem! Foi nesse espírito que respondi ao convite do Hique para montar Yonlu. Conheço o estilo lisérgico desse diretor e amigo desde que fizemos Sete pecados Capitais, uma série pra RBS TV. Depois veio o Arroba, documentário de cinquenta e dois minutos para o Fronteiras do Pensamento, uma piração de cruzamentos de depoimentos com muita imagem de arquivo que ilustrava os conceitos dos palestrantes convidados abusando de interferências de edição a ponto de desconstruir o raciocínio das falas. Mais adiante fizemos o Fogo, curta de vinte e um minutos de duração que montei de um dia para o outro depois de procrastinar semanas a fio. De manhã apresentei o corte e cai no sono, sentado e roncando na ilha, enquanto o Hique assistia e depois me acordava para bater o martelo na primeira (e definitiva) versão. “O filme é isso”, me disse o câncer do cinema gaúcho. E foi. Assisti de novo e a coisa era uma pancadaria de cortes e mistura de técnicas (e falta de técnicas) de edição. Doideira. Mas se engana quem pensa que o Hique é apenas mais um diretor estiloso, que se repete em cada projeto. Ele adora desconstruções formais, mas é de uma maluquice lúcida e que oferece um lugar privilegiado para o montador.

Imaginei o Yonlu como sendo um longa naquela mesma pegada do que já havíamos feito. Me enxerguei segurando a estatueta dourada que foi de Walter Murch, Thelma Schoonmaker, Michael Kahn, Verna Fields, Daniel Rezende (merecia) e tantos ídolos da montagem cinematográfica. A que ponto chega a ambição de quem fica atrás, depois e além das câmeras. Brincadeiras a parte, eu sabia que seria um filme… FODA. Sabia que seria intenso e aberto para a inventividade. Sabia que teria muita liberdade. Sabia que minha opinião seria muito respeitada. Sabia que seria uma oportunidade rara de pilotar com prazer um dos postos autorais da equipe de criação de um projeto muito bacana. Era o filme que eu estava esperando desde que virei montador. O cume do Everest. E então, a janela de bom tempo se abriu, e o sol brilhou, e o material chegou, e eu abri aquele HD como se fosse a minha caixa de autorama no natal de 78 e… PLANOS SEQUÊNCIA????!!!!!!! Essa não…

Maldição! Maldito Hique Montanari! Câncer dos infernos! Lá se vai o meu Oscar. Crise. Procrastinação. Insegurança. Vitimismo. Ladainha. Oh, vida. Oh, céus! Para quem não sabe o que é um plano sequência, é o plano mais complicado de rodar e o mais fácil de montar. O ganhador do Oscar de melhor filme em 2017, Moonlight, começa com um plano desses que dura quase dois minutos. Um plano, por definição, é um trecho de filme ininterrupto, que não apresenta interrupções (corte) na imagem. Corte é aquela troca aparente entre um plano e outro. As vezes muda o ângulo de filmagem da cena, outras vezes muda o enquadramento, pode mudar as duas coisas ou pode ser uma continuação do mesmo plano, mas com um pulinho ou um pulão no tempo, o famoso jumpcut. Sequência, por sua vez, é uma unidade dramática do filme que contém planos e cenas e pode ser considerada como uma fatia da história com um começo meio e fim. Um plano sequência seria essa fatia da história sem um corte aparente. Se o corte existe, ou seja, se dois planos diferentes foram unidos, mas a junção entre eles estiver escondida a ponto de não ser percebida nem assistindo quadro-a-quadro, continuamos falando de um plano sequência. Alguns filmes foram rodados inteiros usando esse tipo de plano. Arca Russa, de Alexander Sokurov ou Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro, são filmes em que a história inteira é contada dentro de um plano único. O montador só precisa colar os créditos iniciais e finais e o filme está pronto. Todo o trabalho de montagem passa a ser de responsabilidade do diretor, que cria a marcação da cena de forma a descartar o uso do corte. Este foi o presente que recebi do Hique.

Deixei de lado a ideia inicial de montar o filme enquanto estava sendo rodado. É comum começarmos a montar os filmes durante a filmagem, assim que os primeiros planos chegam na ilha de edição. Mas perdi a vontade. Azar, pensei. Vou continuar editando meu timeline do Facebook que PELO MENOS NÃO TEM PLANO SEQUÊNCIA, ouviu Hique Montanari?!!! Quer saber de uma coisa? Não vou mais montar esse filme no AVID. Vou montar no FINAL CUT X. Sim, o iMovie PRO! E então, o meu assistente maravilhoso, Iuri Santos, aprendeu a mexer no FCPX e começou a sincronizar e organizar as diárias em cenas e planos. Tudo bem organizadinho. Uma lindeza.

Brincadeiras à parte 2, na verdade isso foi só a desculpa para usar o FCPX que cada vez me agrada mais em tudo que monto. Aquele susto inicial não durou muito. Logo nas primeiras diárias, o Hique já havia me avisado que estava filmando muitos planos sequência que deveriam ser “quebrados” na edição. A questão que pegou no set é que os planos eram tão lindos, mas tããão lindos, que depois de começar a rodar ninguém tinha coragem de parar o trem. Lembro que uma vez ouvi uma frase, acho que foi o Giba citando a Cristina Amaral, que dizia o seguinte: “O maior inimigo do montador é plano bonito.” Mas minha memória é uma bagunça, talvez tenha sonhado isso. Um amigo me lembrou de uma outra frase, essa do Bresson, que é ainda mais radical: “Um conjunto de boas imagens pode ser detestável.” O material bruto do filme era lindo. Só plano bonito. Planos sequência que não acabavam mais. E longos.

Por ser um diretor do tipo obsessivo compulsivo, o Hique não tem medo do trabalho pesado que a função exige. Todos os dias ele me mandava um relatório de filmagem, escrito no calor da hora de folga, comentando cada plano e sugerindo possibilidades de tratamento na montagem. Adorei esse método. Definir a duração dos planos, uma das responsabilidades inerentes ao processo de montagem, ambos sabíamos, significaria bem mais do que eliminar sobras nesse filme. Beeeem mais. Encontrar o ritmo do filme, seria, para nós, um prazer inversamente proporcional ao que a equipe desfrutou na filmagem. Seríamos obrigados a desrespeitar todos os lindos (e intermináveis) planos sequência. A regra era simples: o que funcionar, fica.

E tinha cada maravilha ali que vou te dizer. O Juarez é um senhor fotógrafo. Comecei bem devagar com a tosa. Primeiro, montei umas pré-sequências para mandar para o Canal Brasil. Depois fiz um teaser de quatro minutos. Depois um teaser de dois minutos. E daí fui tateando e encontrando a confiança necessária para meter a tesoura com vontade. Comecei a ouvir as trilhas do Yoñlu que ainda não conhecia. Fiquei chapado com o talento do guri. Era muito maior do que a propaganda que me fizeram dele. Muito maior. Talento gigantesco. Quanto mais eu ouvia, mais triste ficava. Eu sabia que o filme não seria sobre a tragédia do personagem, e sim sobre o processo de criação das músicas e o que passava na cabeça daquele adolescente de dezesseis anos cujo talento era no mínimo extraordinário. Falar é fácil. Como filtrar a depressão de um personagem que existiu de verdade e se matou? Como esquecer temporariamente que os pais desse adolescente continuam vivos e sofrendo uma dor que nunca acaba? Como lidar com a presença virtual desse virtuose da música undergrounde suas letras que falam com precisão absurda sobre dores existenciais que vivi na adolescência e que ainda me atormentam quando chove? Como mergulhar nesse breu de dor e beleza e manter a distância necessária para representar e dar sentido ao que não faz o menor sentido? Como não se perder no horror de ser alguém tão jovem, cercado e inundado por uma beleza tétrica, um abismo de poesia e dor? Eu só sabia que não podia me aproximar demais para não deixar que a dor dele se misturasse com a minha.

Montei o primeiro plano do filme. Ufa! Um plano de 34 segundos. Cartela com título do filme, mais dez segundos. Colei o segundo plano que tinha QUATRO MINUTOS (!!!!). Socorro! Nas primeiras cenas, os planos eram gigantescos e maravilhosos. Planos sequência, obviamente, mas eu já tinha esquecido meu Oscar na gaveta dos sonhos perdidos e voltado ao meu estado depressivo natural. Eram cenas relativamente fáceis de serem erguidas, pois tinham apenas um plano em média. Era assistir os takes, escolher e jogar no timeline. No primeiro plano do filme, me encantei com o talento do Thales, o ator que interpreta o Yoñlu no filme. Canta muito bem, super afinado, toca pra caramba e conseguiu encarnar o guri de forma tão verossímil que chega a assustar. Um show à parte. Na segunda cena, essa de quatro minutos, tropecei na primeira encrenca do filme. A cena me desceu quadrada e voltou. Não consegui engolir.  Não funcionava e, como era um plano sequência… La-ra-ri, la-ra-rá. Bem o jeito era seguir em frente. Mais tarde voltaríamos para ela. Nesse momento inicial, pulei por cima dessa cena e cai no Viaduto da Borges. Lindo. Mas até ali, eu ainda não sabia que ritmo o filme teria. Como faria para juntar aquele amontoado de planos sequência de 3 minutos em um filme de 12 horas de duração? Se a gente dividisse em duas sessões de seis horas, quem sabe poderia funcionar para a primeira temporada de uma série.

Nas cenas seguintes, comecei a me divertir um pouco. Foi naquelas estátuas sob o Viaduto da Borges que me deu um estalo. Ali naquelas estátuas sujas encontrei o filme e o Yoñlu. Eu só precisava de uma trilha que tivesse a ver com o Yoñlu. Uma trilha instrumental e meio psicodélica. Alguma coisa no personagem e na história me lembravam do filme Pink Floyd The Wall, do Alan Parker, que assisti dezessete vezes no cinema quando tinha 16 anos. Eu gosto de usar trilhas sonoras para montar, o trabalho fica mais divertido e me concentro com mais facilidade. É como dirigir ouvindo música. Copiei a discografia completa do Pink Floyd para o HD e comecei a selecionar as faixas que tinham mais a ver com a piração do filme. Colei a Echoesno timelinee começou a diversão. Muitas vezes aconteceram aqueles acidentes quando a trilha dá uma viradinha exatamente no momento em que acontece também uma viradinha na imagem. A trilha do Pink Floyd me sugeriu possibilidades de corte. Mas foi a energia experimentalista do Yonlu que realmente contagiou a textura do filme, a composição do tempo em diferentes durações, fragmentações e interferências na imagem original dos planos. Quanto mais me admiravam as invencionices do nosso protagonista, mais eu me permitia experimentar combinações de planos, filtros e cortes. Nesse ponto ficou claro que os planos sequência seriam massacrados, esquartejados sem o menor respeito. Dali para a frente, era a tesoura contra o tempo. Trouxe de volta o espírito do Fogo, o curta do Hique, para a ilha. Confirmei a minha escolha do software de edição já nas primeiras cenas. O FCPX é a Fender dos softwares de edição. Macio, rápido e muito divertido de usar. O conforto do software era multiplicado por dois, já que o material havia passado pela mão de um exímio colorista e gerente de mídias, o que me garantiria tranquilidade de ponta a ponta no processo. Foco 100% no corte. Focar no corte significa muito para um profissional do corte, obviamente, mas quase nunca é assim. Poucas produtoras entendem a importância de se contar com um serviço de laboratório digital. Desde que a película saiu de circulação, o que mais se ouve é: “mas o laboratório digital vai revelar o que afinal, meu Deus do céu?” Tudo. A Post Frontier assumiu a parte de conversão de 4K para ProResLTcom janela queimada, timecodeaparente, etc. Todo e qualquer material a ser incluído no filme passava pela mão da Post antes de chegar na ilha. Serei eternamente grato ao Daniel Dode e sua equipe por esse trabalho. Se me pedissem para dar apenas um conselho para quem vai começar a rodar uma produção hoje, eu diria: contrate um serviço de gerenciamento de mídia, ou seja, um laboratório digital. De preferência marque uma reunião na fase de pré-produção. Foi exatamente o que eu disse para o Hique. A quantidade de problemas que podem surgir na finalização de som e imagem de uma produção grande é avassaladora. Não é brincadeira a quantidade de dados que o material bruto de um longa ou uma série gera. Um erro simplório na captação ou na conversão do material pode significar semanas de trabalho depois. Peça para um gerente de mídias explicar em que consiste o seu trabalho e isso vai lhe convencer na hora que é imprescindível. Se não convencer, tenho pena do seu montador.

Eu sempre defendo o corte invisível. Aquele corte que se faz usando as técnicas de raccorde que acontece com tal fluência que não chama a atenção do espectador. Esconder os cortes é o que normalmente fazemos nas montagens. O filme deve ser montado com o objetivo de tornar a experiência do espectador o mais confortável possível para se concentrar na história. Cortes aparentes desnecessários e indesejados são como buracos na pista. Quanto menos o espectador lembrar do montador durante a projeção de um filme, melhor. Claro que há exceções a essa regra. Cenas de passagem de tempo são as mais comuns, mas há outros momentos em que a montagem pode e deve vir para o primeiro plano. Quando isso acontece, é importante fazer um esforço para justificar a escolha de deixar a pincelada aparente, usando uma metáfora da pintura impressionista, como elemento de representação de determinados aspectos importantes do personagem ou das situações que vivencia. Um estado de espírito, uma lembrança, presságio, realidade ou tempo que se diferencia daquele em que o personagem está inserido, são motivos para a costura vir à tona e sair dos bastidores da fluência fílmica. É importante conhecer e refletir sobre todas as decisões feitas na sala de montagem, principalmente nesses casos. Nada é errado em audiovisual. Tudo é possível. O que existe é: mais adequado vs. menos adequado. Mais expressivo vs. menos expressivo. Calcular e decidir como narrar é um exercício de reflexão que deve ter o espectador como foco principal. É o que aprendi e acredito. A visão do diretor sobre a história é o ponto de partida. Com Yonlu, durante o processo de “revelação” do que estava latente naquela montanha de material bruto, fui tentando decifrar que língua o filme queria falar. Como acontece com o arqueólogo diante de uma parede de hieróglifos, um mapa de referências é imprescindível para decifrar os símbolos ocultos naquela narrativa e traduzir/representar seu conteúdo em uma nova forma inteligível. Há quem defenda que a necessidade de ser inteligível por alguém de fora do processo de realização não é uma necessidade. Não sigo essa “escola”. Christoph Niemann, um ilustrador de origem alemã, nos conta na série documental Abstractque criou um “abstratômetro” pessoal para medir a eficiência de uma representação. Abstrato demais, ninguém entende. Abstrato de menos, não cumpre a função de representar. É na montagem que vamos dosar a medida dessas abstrações, traduzindo em eventos audiovisuais a essência de uma sequencia de ações, de um personagem e suas desventuras. Através das percepções do Hique e da forma como ele criou o roteiro e filmou os planos, além da minha intuição sobre o que o filme me pedia para se tornar (isso parece coisa de maluco, e é mesmo) fomos avançando. Como se olhasse para uma fotografia que surge no papel mergulhado no líquido revelador sob a luz vermelha do laboratório fotográfico, eu tentava achar o ponto de contraste perfeito, o momento de fixar aquela latência na forma de tempo. E o que via surgir era um Yonlu de puro experimentalismo formal. A montagem inteira ia se transformando numa sucessão de fragmentos de lembranças, momentos e visões do personagem sobre ele mesmo. O filme foi ganhando corpo, mimetizando em sua forma a representação formal que o próprio Yonlu usava como instrumento de auto revelação de si mesmo. Enquanto se debatia e se afogava naquela dor e desespero, os desenhos, fotografias, poesias e música eram a tentativa de encontrar uma linha de contorno, uma forma que o definisse e que fosse ora esteio, ora válvula de pressão. Quanto mais percebêssemos no filme essa sanha enlouquecida do personagem em criar mundos imaginários e, através da forma, conseguíssemos levar o público a fruir aquela profusão de vertigens dentro dos limites da linguagem audiovisual da forma mais fiel possível ao trabalho original do Yoñlu, melhor estaríamos fazendo o nosso trabalho. Tudo isso para dizer que lá pelas tantas me dei conta de que cortes invisíveis seriam uma exceção no Yonlu. O Yoñlu de verdade era puro jumpcut.

Nas cenas de interação com os internautas, por exemplo, a montagem virou um amontoado de interferências e cortes rápidos, blacks entre os planos, sobreposições, planos de cabeça pra baixo, um samba do branquelo doido. Para se ter uma ideia, peguei a abertura doAmerican Horror Storycomo referência e comecei a imitar aquele efeito picotado que lembra flashes de assombrações. Trabalheira do cão. Uma coisa que usei muito no curta Fogo, foi uma tentativa de imitar o efeito de degradação das películas nos primórdios do cinema, em que fotogramas eram perdidos e o filme era remendado para ser projetado. Então acaba que os pedaços que faltavam geravam uma sucessão de jumpcuts(pequenos saltos) aleatórios. Já me disseram que esse efeito era causado pelas câmeras a manivela que não mantinham a velocidade de frames por segundo constante durante a filmagem. Eu vi esse efeito no filme Drácula de Bram Stocker, do Coppola, na hora em que o vampiro ataca a donzela na forma de lobisomem. Dizem que ele conseguiu aquele efeito usando uma câmera com manivela na filmagem. Recentemente vi o mesmo efeito no filme O Chamado 2, quando a vilã (Samara) tenta sair de dentro de um poço. Adoro esse efeito. Quando montei o Fogo, usei esse recurso nas cenas em que o Nelson Diniz se vestia de mulher. Eu crio isso manualmente no Final Cut, deletando alternadamente ora dois frames e deixando três, ora tirando três e deixando dois. Isso cria uma atmosfera artificial de magia na cena, um efeito sobrenatural no tempo.

Em alguns momentos queria muito usar fusões longas. Ao contrário da maioria dos meus amigos montadores e diretores, eu amo fusões. Talvez justamente por implicar com as manias deles, não sei. Cada vez que tento usar uma fusão ou um jumpcutnuma situação que me parece perfeita, lá vem o preconceito formal para acabar com a minha festa. De uns tempos para cá, tenho a impressão que o público já ultrapassou, ainda que inconscientemente, os diretores (pelo menos os porto-alegrenses) em sensibilidade e entendimento sobre linguagem audiovisual. Tenho alergia cada vez que ouço alguém me dizer: “Não gosto de fusão”, “não gosto de jumpcuts”ou “não gosto de zoom”. Bobagem. Não entendo como alguém pode não gostar de um recurso de linguagem a priori, sem considerar o contexto. É como dizer: “não gosto de travessão” ou “não gosto de ponto e vírgula”. Parece papo de maluco. Tipo “não gostaria de usar o futuro do pretérito nas minhas frases”. Daí o cara acaba dando curvas para dizer de forma tosca o que nasceu para ser dito com o recurso proibido em seus dez mandamentos. Isso não faz o menor sentido e limita tratamentos expressivos que poderiam representar de forma mais adequada e criativa situações que pedem justamente por esses recursos. Para cada “não gosto disso, não uso aquilo”, poderia citar um filme que usou esses tabus de forma genial. Como o Hique não tem essas manias, eu sugeri todo o arsenal. E acabamos incluindo uma fusão com mais de vinte segundos de duração! Obrigado também por isso, Hique!

Esse filme renderia um livro de dez volumes sobre o processo todo, e tenho a intenção de editar uma sessão comentada algum dia junto com o Daniel Dode (colorista) e a Gabriela Bervian (sound designer) falando sobre cada trecho da pós desse filme. Para concluir, não sei mais o que dizer, então espero que tenhamos acertado a mão e que vocês gostem do resultado. Espero que os fãs do Yonlu se sintam mais próximos do seu ídolo e que o reconheçam na tela. De minha parte, acredito que o Yonlu ficaria muito feliz com o filme. Desejo muito também que o filme inspire e acolha os adolescentes e que os ajude a terem certeza de que não estão sozinhos nessas dores de existir.  É duro, mas fica mais leve com o tempo. O projeto da sua vida pode estar esperando por você lá adiante, aos 48 anos. Foi o que aconteceu comigo. Valeu, galera. Que seja forte e lindo nas telas. E o Oscar que se dane, era só um macguffin. 😉

PS.1: Yonlu, O filme:

PS.2: Yonlu, O trailer:


Sou formado em jornalismo com pós em Marketing e Comunicação. Sou cria da Casa de Cinema de Porto Alegre, onde comecei como assistente do Giba. Montei as séries Notas de Amor; Mulher de Fases, Doce de Mãe e De Carona com os Ovnis, além dos longas-metragens Entreturnos, Contos do Amanhã, Legalidade; Yonlu; Depois do Fim; Pra Ficar na História e O Método. Desde 2007, sou professor de audiovisual nos cursos de Publicidade e Propaganda, Design e Jornalismo da ESPM.

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